mentira
Diz no meu livro de História que, antigamente, os comboios se moviam a carvão. Os comboios costumavam ser muito importantes. As pessoas, com os seus chapéus altos, casacos compridos e vida a preto e branco pareciam sempre muito entusiasmadas, acenando para o fotógrafo ao entrar na carruagem. Eu nunca andei de comboio. Não tenham pena de mim. Eu gostava de experimentar uma vida a preto e branco. Gostava de sentir a alegria de receber uma carta, de ir aparar o bigode à barbearia. A minha vida está cheia de cores berrantes. São lindas, mas são demais. Porque quereria eu andar de comboio, se temos o carro, o avião, o foguetão, se daqui a uns anos talvez seja possível o teletransporte?
Nos filmes antigos, toda a gente fuma. Até as crianças, às vezes! E fumam em todo o lado, sempre. Antes as pessoas acreditavam que os cigarros eram milagrosos. Que curavam um monte de doenças. E fumavam. Hoje sabemos que não é, de todo assim. E ainda há quem fume. Mas esses sabem o que estão a fazer a si próprios de cada vez que levam o cigarro à boca. Então e antes? E quando as pessoas não faziam ideia dos malefícios do tabaco? Era essa ignorância salvaguarda contra infeções e cancro?
Suponho que o mundo seja movido a mentiras. Que a vida se mova a mentiras. E com o fim deste combustível não teremos de nos preocupar. Quando somos muito novos, muito ingénuos, ou ambos, ficamos surpreendidos com elas. Apanham-nos despercebidos. Mas depois entendemos que nos rodeiam, que estão em todo o lado. A mentira deixa de ser novidade. Torna-se apenas num meio de transporte, em algo que utilizamos para atingir um certo fim, para chegar a um dado ponto.
Dizem que o que não sabemos não nos pode magoar. Acredito que isso seja apenas uma desculpa que os omissores encontram, uma desculpa que lhes permite fechar os olhos à noite sem que lhes dancem à frente todas as coisas que deviam ter dito a quem nada disseram.
Então qual é a diferença? Onde é que se traça a linha? Entre a amizade e a desavença, entre a inquietude e a paz, que é tudo menos minha? Como é que distinguimos a mentira que leva o mundo para a frente e a que o desprestigia, tornando-o para muito pior diferente? Existirá distinção entre mentir por ódio, mentir por pena, mentir por amor?
Move para a frente o mundo o político, que nos grita pelos microfones, que nos faz promessas sem sentido, só para que não desistamos de trabalhar para lhe encher os bolsos? Move para a frente o mundo o médico, que diz ao seu paciente que melhora, só para que não perca a esperança de lutar por uma vida que de si foge? Move para a frente o mundo a mulher, que diz que não chegou a tempo ao jantar porque tinha muito que trabalhar?
Talvez todos nós puxemos para trás o mundo, tomando a mentira como hábito, fingindo-nos ludibriados por ela, como se não a soubéssemos de cor. Porque, no final do dia, todos sabemos que o político é corrupto, que o médico já desistiu de salvar aquela vida e que a mulher anda envolvida com o seu superior.