Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Inspiration Lab

Ir

Antes, o chiar das rodas que me deslizam pela rua fora agonizava-me, ecoando não no ouvido, esse já acostumado, mas na alma, que só se habitua ao que lhe convém e não considera o peso de todos os invernos passados quando impõe as suas vontades. Esse agudo chinfrim soava à campainha da porta da minha morada última, o meu passo arrastado um sacudir do pó dos sapatos no tapete da entrada, antes de penetrar na incógnita penumbra que, de tanto dela fugir, já sei de cor. Mas, hoje, esse assobio que me anuncia é a lembrança de que, por cada passada que dou, menos uma fica por dar (suponhamos que algum dia sentirei feito tudo o que tinha a fazer; vida longa à minha sanidade, mental que a seja).

Na valeta jaz uma divagante de nariz empoeirado, não tanto quanto o futuro que é cada vez menos seu. Os olhos baços, virados para dentro, não estão mais vazios de vida do que estavam ontem. A boca espuma-se tal qual o mar que lá atrás rebenta, furioso: se ela soubesse o quanto o tempo nos consome deixava de se consumir, ou talvez saiba e queira logo ir, que isto de morrer aos bocadinhos é provação para os impacientes. Sirenes. Já nem se pode definhar em paz. Lá chegam eles, já lhe conhecem melhor as veias do que ela alguma vez se conheceu a si. 

Faltam três para a hora certa. Agradavelmente previsível (não fossem as rotinas âncoras que prendem as gentes obsoletas ao porto da avassaladora atualidade), o 25 desce a avenida, uma marcha soluçante de membros desconexos e olhares ausentes que se vislumbram através dos vidros embaciados. Partes de todo nenhum que descem do autocarro ordeiramente; não podem ser apressados se não são nada.

Entro em primeiro lugar, num exaspero conformado com a minha própria lentidão, através de um corredor de cidadãos exemplares, que provavelmente atiram pastilhas elásticas para o chão e urinam no chuveiro. Fascinante quem conseguimos ser quando nos estão a ver. Sento-me. Argh. Amanhã chove.

Arrancamos. Vamos todos para o mesmo lado. Emblema ao peito, cachecol ao pescoço, esperança no rosto. Unidos por uma devoção sem porquê que não trocaríamos por nada deste mundo.

Com um solavanco que soa a último suspiro, o autocarro para. Não o julgo. Só pode ser extenuante carregar todos os dias quem nem sabe se quer ir, quanto mais para onde. O motorista murmura qualquer coisa sobre umas luzes vermelhas intermitentes. Queixumes entredentes juntam-se num coletivo murmúrio de consternação. Mas eu recosto-me, não tenho pressa. Ir é a minha forma de chegar.

Luísa

"No fundo, todos temos necessidade de dizer quem somos e o que é que estamos a fazer e a necessidade de deixar algo feito, porque esta vida não é eterna e deixar coisas feitas pode ser uma forma de eternidade." - José Saramago

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2019
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2018
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2017
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2016
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2015
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D