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Inspiration Lab

Ir

Antes, o chiar das rodas que me deslizam pela rua fora agonizava-me, ecoando não no ouvido, esse já acostumado, mas na alma, que só se habitua ao que lhe convém e não considera o peso de todos os invernos passados quando impõe as suas vontades. Esse agudo chinfrim soava à campainha da porta da minha morada última, o meu passo arrastado um sacudir do pó dos sapatos no tapete da entrada, antes de penetrar na incógnita penumbra que, de tanto dela fugir, já sei de cor. Mas, hoje, esse assobio que me anuncia é a lembrança de que, por cada passada que dou, menos uma fica por dar (suponhamos que algum dia sentirei feito tudo o que tinha a fazer; vida longa à minha sanidade, mental que a seja).

Na valeta jaz uma divagante de nariz empoeirado, não tanto quanto o futuro que é cada vez menos seu. Os olhos baços, virados para dentro, não estão mais vazios de vida do que estavam ontem. A boca espuma-se tal qual o mar que lá atrás rebenta, furioso: se ela soubesse o quanto o tempo nos consome deixava de se consumir, ou talvez saiba e queira logo ir, que isto de morrer aos bocadinhos é provação para os impacientes. Sirenes. Já nem se pode definhar em paz. Lá chegam eles, já lhe conhecem melhor as veias do que ela alguma vez se conheceu a si. 

Faltam três para a hora certa. Agradavelmente previsível (não fossem as rotinas âncoras que prendem as gentes obsoletas ao porto da avassaladora atualidade), o 25 desce a avenida, uma marcha soluçante de membros desconexos e olhares ausentes que se vislumbram através dos vidros embaciados. Partes de todo nenhum que descem do autocarro ordeiramente; não podem ser apressados se não são nada.

Entro em primeiro lugar, num exaspero conformado com a minha própria lentidão, através de um corredor de cidadãos exemplares, que provavelmente atiram pastilhas elásticas para o chão e urinam no chuveiro. Fascinante quem conseguimos ser quando nos estão a ver. Sento-me. Argh. Amanhã chove.

Arrancamos. Vamos todos para o mesmo lado. Emblema ao peito, cachecol ao pescoço, esperança no rosto. Unidos por uma devoção sem porquê que não trocaríamos por nada deste mundo.

Com um solavanco que soa a último suspiro, o autocarro para. Não o julgo. Só pode ser extenuante carregar todos os dias quem nem sabe se quer ir, quanto mais para onde. O motorista murmura qualquer coisa sobre umas luzes vermelhas intermitentes. Queixumes entredentes juntam-se num coletivo murmúrio de consternação. Mas eu recosto-me, não tenho pressa. Ir é a minha forma de chegar.

união salgada

Vemos aquele namoro, a saudade com que se apartam, a paixão com que se acolhem, e pensamos ver tudo, a imaginação desenhando para lá do alcance dos olhos.
Beijos doces. Lambidelas frescas, de uma delicadeza certa de que se seguirão mais delícias como aquelas. Ternos murmúrios, imperceptíveis, de alcova, duas essências entrelaçadas que saltitam de mão dada pela fofa nebulosidade do onírico, tão inesquecivelmente vibrante que, quando as pálpebras ganham à vontade e se cerram, e a mente produz para si mesma difusas irrealidades, estas parecem ao palpitante sonhador insípidas e tediosas. Profundas imersões nos olhos amados, transparentes com a certeza de nutrirem incomensurável afeto pela alma que abraçam, mostram as reflexões que os espelhos, já empoeirados, almejam, a superior beleza da existência, que não a vê. E arrancam suspiros profundos dos peitos de quem com eles se cruza, levando aguerridos defensores da satisfação com a própria companhia a desejar por alguém somente cuja existência seja capaz de tornar aprazíveis as íngremes encostas do caminho, preferindo, por defeito da lânguida natureza, suportar a dor e exaustão, em prol de canalizar essas energias para retificar a obliquidade mundana.
Mas as coisas da natureza são, por vezes, tão pouco naturais. E caímos no engano de acreditar que o que aparenta ideal na nossa presença se mantém igual quando o nosso olhar pousa noutros cenários. Que mais havíamos de fazer, senão evitar a loucura, ignorar a falsidade que pode existir em tudo quanto há? Percebo agora, numa agreste tarde de dezembro, de fronte para o oceano, que, logo que viro as costas, eles
Afastam-se com a sofreguidão de quem foge de si mesmo e, quando se voltam a juntar, num embate violento, fazem-no porque não querem estar sós à força, e não têm força para apreciar a complementaridade do eu. Rugem, berram, porque o silêncio permite pensar sobre o pensamento através do espesso nevoeiro de incertezas, opacas cortinas que se cerram sobre os olhos de uma mente em dúvida que a deseja superar, mas que duvida sobre como o fazer.
Eles são o mar e a areia. Juntos porque querem de maio a setembro mas, logo que se levantam as toalhas, se entaipam as janelas dos cafés, logo que se calam os vendedores de bolas de Berlim, juntos porque tem que ser. 

Bip. woof

Bip.
«Não entendo os cães que ouvem o bater da porta da rua, lá do seu cárcere na cozinha, onde ficam cativos horas que são vidas, não vão eles morder chinelos ou salivar nas almofadas, Bip. e ficam loucos de entusiasmo, saudando quem deles "cuida", desfazendo-se em agradecimentos por se lembrarem de dar ao fardo que um dia desejaram cinco minutos de ar fresco, Bip. antes de as luzes se apagarem e começar tudo outra vez.»
Bip.
«Suponho que um dia o cão já foi cachorro, de pernas bambas e olhar leitoso, e então recebia a atenção que a sua puerilidade não sabia valorizar. Bip. Mas ousou crescer, quem diria. E, mesmo finda a obsessão carinhosa, arquétipo da alegria de viver, agora tão idealizada que era quase fantasia, Bip. mantinha-se a esperança no regresso das palavras sussurradas nas noites de trovoada, nas festas que eram paz para a alma.»
O número para o qual tentou ligar...
«E é tão irónico quanto nojento que o alvo de toda aquela desmerecida vassalagem, depois de ter untado o seu ego narcisista com anos de devoção, ache monótono o prazer e deixe o animal que nunca foi de estimação exposto à crueldade das ruas onde não foi criado para viver. Pobre diabo, que sofria com prazer. Como é possível ser-se tão amável, e mesmo assim tão pouco amado?»
...não se encontra de momento disponível...
«Repudiá-lo-iam certamente os seus ancestrais predadores, ao ver a natureza dócil e submissa dos que lhes seguiram, seres que correriam alegremente para o colo de quem os deixou à mercê das circunstâncias, seres que aceitariam de bom grado regressar ao seu cativeiro, viver nas sombras de longínquas, escassas, potentes alegrias que lhes acostumaram a alma a um calor que jamais os confortará.»
...deixe a sua mensagem após o sinal sonoro...
«Estúpidos.»
«Estúpida.»
BIP.

Filosofia

Tal como ele, a gente
Usou a dúvida para chegar
À verdade
Eu ficaria contente
Se pudesse afirmar
Com o parco saber que me dá a idade
Que não fui usada
Para consolar
Um coração partido
Uma alma quebrada
Amor sem onde pousar
Um ser em alarido
A diferença, penso
É que Descartes lá chegou,
Ao conhecimento fundamental
E eu, alguém a duvidar propenso,
Ainda hoje dou
Por mim a pensar se foi tudo real.
Descartes acreditava
Que nada no mundo era de fiar
Até achar verdades absolutas
Eu confiava
Em tudo o que a vida tinha para me dar
Até me entregar a inglórias lutas.
Escreveu ele que nada podemos conhecer
Porque não dá para distinguir
O sono da vigília
Ora que coisa linda para acontecer
Poder estar a dormir
E não ter a alma em quezília
Sonhar com noites eternas
Minutos em horas tornadas
Sem separações ao amanhecer
Ao ouvido, frases ternas
Ter na mente essas palavras sussurradas
Em que me possa perder
Mas a vida não é à nossa medida
Nem são eles o que nós esperávamos
Esqueço os olhos molhados
Na hora da despedida
Os últimos olhares que trocávamos
Caminhos pelo mundo separados
Não acredito no destino
Mas há quem esteja destinado
Nós não
Pensar em ti é clandestino
Vá lá, só mais um bocado
Até ao amanhecer de verão
Em que essas horas
Foram só umas mais
Partes de algo bem maior
E não mais o tudo de outrora
Não mais tempos ideais
De que tanto me esqueço como sei de cor

A vida tem disto, quem diria
As novidades que me traria
Aprendizagens que absorvo com fervor
Que eu afinal não sou fria
Que serve para algo a filosofia
E que nem tudo é amor

noiva

Nas suas mãos apodreceu

O ramo da laranjeira

Lentamente

Logo que ela pereceu

Juntaram-se os abutres à sua beira

Para a livrar de ser gente

 

O vestido colado ao corpo

Está encharcado

Mas não de lágrimas de alegria

É carcaça para um morto

É vermelho em branco imaculado

Cheira a sangue, a sacristia

Não foi o quase-marido

Que deu o seu suspiro por terminado

Ele ainda nem chegou

No meio do alarido

O criminoso, realizado,

Já abalou

Cada convidado,

Quando chega,

E ouve a notícia,

Reproduz o recado,

Dando a sua achega,

Coscuvilhando com perícia

Quando se viu sozinho

Quando viu que para ele não olhava

Ninguém

O rapazinho

Foi ver se a encontrava

Foi ter com a mãe

Meter-lhe o dedo na ferida

Para ver se era real

Para ver se era como a de Jesus,

Ou se era como na imagem da Ermida

Um cadáver falso, de cal

Pendurado numa cruz

Os presentes choram

Até o altar se transformar

Num afluente

Mas não demoram

A os seus uivos calar

Para acusar novamente

O destino traiçoeiro

A fé malfadada

Ou um Deus distraído

Que tornou um amanhecer soalheiro

Numa tarde amaldiçoada

Num anoitecer combalido

Pois não há quem minta

Que da mentira não se esqueça

E Decidem então

Ir até à quinta

Antes que o manjar arrefeça

E que lá se parta o pão

E reze alguma coisinha

Entre o camarão e o couscous

E as tostas e o patê

Pela alma que divaga sozinha

Procurando por uma luz

Que não vê

unicórnio

Olho à minha volta

E vejo gente

Que não se revolta

Que toma tudo como assente

Vejo quem quer ser diferente

Cair no espalhafato

Porque a diferença está na mente

E não na marca do sapato

Vejo humanos cinzentos

Que vivem vidas iguais

Rostos macilentos

Que se viram aos demais

Todos são cavalos

Num mundo onde a raridade é parca

Continuo a encontrá-los

E deles estou já farta

Mas há em mim algo colorido

Que me distingue dos demais

Na minha alma um tom garrido

Que desafia ideais

Chamam-me de diferente

Pela maneira como me visto

Mas só divirjo verdadeiramente

Quando me esqueço que existo

Chamam-me assim porque corro

De um lado para o outro

Ai, Jesus, se eu morro

E me lembram como um potro

Aí eu volto à vida

E mato quem me difamou

Posso viver numa corrida

Mas vida assim nunca ninguém levou

Porque vejo céus cor-de-rosa

Chamam-me me assim

Com meus sonhos mariposa

Vivo longe de mim

Uma num milhão

Sempre quis ser um unicórnio

Com infinita determinação

Até estourar o último neurónio

Dezassete

De primavera em primavera,

Já lá vão dezassete

Nascida numa nova era

Em que tantos erros se comete

Num novo milénio

De pacífico uma ilusão

Um viver boémio

Um respirar com sofreguidão

Vi mestres da oração

Violar para sair

Da sua solidão

E mentir

Sobre a devassidão

Que causaram

Ouvi artistas que, com uma canção,

Me mudaram

Ouvi de inocentes

Encarcerados na cadeia

Soube de gentes e gentes

Injetando na própria veia

O antídoto para tudo

O que há de bom

Esperei ouvir de um mundo mudo

E deliciei-me com o seu som

Vi imbecis

Assumir a liderança

São estes tempos vis,

Mas ainda há esperança

Se o Homem não me conseguiu desiludir,

Esteve lá perto,

O suficiente para sentir

Que nada na Terra bate certo

Gritei para o vazio

Descobri com assombro

Que posso deitar fogo ao frio

E nem ver o encolher de um ombro

Tentei mudar o mundo

Mas foi o mundo que me mudou

Mas não desisto por um segundo

De ser quem mais longe chegou

Hei-de ser nome assente

Na mais esquecida memória

Hei-de orgulhar muita gente

Figurar nos livros de História

Eu não vi muito da vida

E a vida ainda não viu muito de mim

Pois que não me dou por vencida

Até me esquecer de porque luto assim

Fome

É fome

Sempre que me lembro de ti

Vontade que me consome

Que me mata só por si

É morte

Que comigo teima

Uma dor forte

Que por dentro queima

É ardor

Que me leva de mim

Insuportável calor

Mas tão frio, por fim

É gelo

Que me enregela a alma

Mas prefiro tê-lo

Que enfrentar o silêncio, a calma

É o vazio

Tão cheio de nada

Que me deixa por um fio

Que me deixa esfomeada

Fome é sobre ti não ter qualquer pista

E mesmo assim seguir toda a tua ação

Fome é ter-te tão longe da vista

Quão perto estás do coração

Noite

A noite canta

Uma melodia que espanta

Quem não reconhece a tristeza

E não conhece beleza

Como a tua.

Ilumina a lua

A cidade triste

Que ergue escudos em riste

Contra a solidão

E toda a dor de coração

Em que nos vieste deixar

Só lhes resta chorar.

As árvores estão nuas

E o teu nome ecoa pelas ruas

E eu sofro morosamente

Mas aguento decorosamente

As lágrimas que querem cair

Pois não irias sentir

Contentamento

Ao ouvir o meu lamento

Por não te ter nos meu braços

Restam os sorrisos escassos

Trazidos pelo vento

Ou talvez pelo sentimento

De que foste feliz enquanto cá estavas

De que sorrias enquanto batalhavas

A maior luta que havias de conhecer.

Luta que acabaste por perder.

Resta-me sorrir

Por ainda sentir

Os teus braços,

Quentes abraços

Que me confortam a alma

Que me aproximam da calma

O mais que é possível

E é incrível

O quanto podes estar comigo

Ser ainda o meu abrigo

Já tendo ido embora.

Fico agora

Com a ideia

Que me corre em cada veia

A saudade.

Vem a idade

Passam os anos

E nós ficamos

Entregues às memórias

Desses tempos, dessas glórias.

A cidade adormece

E no silêncio até parece

Que reina a paz

A noite que finda traz

Novas dores,

Novos amores,

Novos desafios,

Novos desvarios

Mas a saudade não vai de mim.

Melhor assim.

Quero sentir-te em toda a parte

Não quero esquecer como é amar-te.

Heroína

Eram os cavalos brancos

E as carruagens

Tempos belos, brandos

Que hoje são só miragens

Era um conto de fadas

De príncipes e princesas

Punhamos de lado as espadas

Para discutir as incertezas

Vencíamos dragões

Na nossa história encantada

Não tínhamos complicações

Agora, não temos nada

Os cavalos ficaram cansados

E as carruagens lascadas

Muitos segredos acumulados

Entre histórias mal contadas

Sem ele, fiquei vazia,

Cedi à tentação

De ficar todo o dia

Mergulhada em autocomiseração

Depois vim a a perceber

Que para toda a cinderela há fada madrinha

E que tudo o que tinha de fazer

Era encontrar a minha

Mas ela não aparecia

Procurei por todo o lado

Até que então vi-a,

Num espelho, o meu reflexo projetado

E pensei: porque não eu

Personificar a salvadora que me fascina

Aproveitar a força que a minha mãe me deu

E ser a minha própria heroína?

Luísa

"No fundo, todos temos necessidade de dizer quem somos e o que é que estamos a fazer e a necessidade de deixar algo feito, porque esta vida não é eterna e deixar coisas feitas pode ser uma forma de eternidade." - José Saramago

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